A poetisa Maria Afonso, Natural de Fóios, onde nasce o Côa contribuiu com este texto que redigiu para esta fotografia que representa o mesmo rio, junto à sua foz::
"Nesse dia tinha ido, hábito comum em dias quentes de Verão, até ao rio Côa. A forma de passar bem o tempo das férias grandes incluía, inevitavelmente, os banhos no rio. Ali aprendera a nadar e a mergulhar. Ao longo da vida manteria viva a memória daquela sensação da água em velocidade pela cabeça e o corpo a serenar, depois, como se pertencessem ao mesmo elemento. As conversas com os amigos eram um despertar para as coisas do mundo. Riam de tudo e a união era um pacto mútuo que ninguém quebraria. A vida era feita de simplicidade desde o amanhecer ao cair da noite.
Era meia tarde quando um rapazito mais novo, gestos inquietos, o chama de um ponto mais alto. Não conseguia perceber o que dizia, mas as palavras eram acompanhadas de um sorriso que o tranquilizava. Pegou na camisola e nos calções e, de toalha ao ombro, aproximou-se do rapaz que, apesar de afogueado, conseguiu dizer ao que vinha – o teu tio, o teu tio chegou da França!
O coração disparou inesperado. Na face ruborizada o riso estalou. Já não via o tio há cerca de um ano. Habitualmente trocavam cartas, mas o intervalo entre o envio e a resposta parecia infindável. Com o tempo fora-se habituando e decidira mesmo não pensar demasiado no assunto. Assim, quando o carteiro chegava com a carta selada de França, era um momento de quase encantamento. Nunca tinha saído da terra, a não ser à capital de distrito e, noutra vez, à Nazaré ver o mar com os colegas e professor da escola. Por isso cada carta recebida do tio era uma novíssima viagem. Percorria as avenidas de Paris cheias de gente elegante, sentia o cheiro do café com leite nas mesas das esplanadas, olhava os enormes cartazes a anunciar os mais recentes filmes e chegava a entrar no escuro dos cinemas, sem querer perturbar ninguém, quando o ecrã já se inundava de cor e de som. Sabia que a vida do tio não era fácil. A casa onde vivia resumia-se a um pequeno quarto onde dormia e cozinhava. Valia-lhe, contava nas muitas linhas que escrevia, a enorme janela também varanda que dava para a larga e arejada rua. Quando chegou a França, após ter ponderado entre ir para a guerra em África ou dar "o salto" para o apetecível desconhecido, começou a trabalhar na "route de France". Aquele alcatrão negro haveria de o levar a outras paragens. Era um jovem e não podia passar indiferente à música de Adamo, a um galã como Alain Delon, ou à sexy Françoise Hardy. Conheceu gente nova que o "embochou" noutro patrão. Ali aprenderá a guiar pesados camiões de manhã à noite. Por vezes mandavam-no subir à grua e, dali, era como se comandasse o mundo.
Quando, em vez de carta, chegava um bilhete-postal com imagens de praias e cidades para ele desconhecidas, o seu olhar iluminava-se e, numa funda inspiração, dizia para dentro – um dia também eu!
Quando chegou a casa dos avós trazia as mãos suadas. A saudade do tio tinha acumulado histórias que haveriam de trocar. A surpresa seria maior do que nos anos anteriores. Nesse dia o tio trazia um automóvel. Abraçaram-se longamente até às lágrimas, das que só aqueles que viveram momentos destes sabem as razões e os porquês. Este regresso era especial. O rapaz não conseguia desviar o olhar do brilho tentador do automóvel. Só depois do tio dizer para entrar e ver como era por dentro, despertou. Sem hesitar meteu-se no carro. Tudo era novidade e ali se deixou ficar esquecido, por entre a maciez dos bancos vermelhos e o cheiro desconhecido a algo novo. De dentro olhava a família e amigos que iam chegando nas não os ouvia. Aquele espaço era um interminável impulsionador de sonhos. Quando saiu, pousou levemente o braço sobre o capot. Nesse instante o tio chamou-o e só teve tempo de sorrir. A fotografia estava feita.
Anos mais tarde um guardador de memórias haveria de a encontrar entre milhares de outras fotografias. Ele não sabe que me veio parar às mãos. Eu também desconheço a razão. A vida pode ser assim incrível. Não sei se se trata de um "dejà vu", se inventei esta história ou se fui eu que a vivi. Mas nada disso importa agora.
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Maria Afonso